segunda-feira, 27 de outubro de 2008

1º Desafio

Mãezinha

A terra de meu pai era pequena
e os transportes difíceis.
Não havia comboios, nem automóveis, nem aviões, nem mísseis.
Corria branda a noite e a vida era serena.
Segundo informação, concreta e exacta,
dos boletins oficiais,
viviam lá na terra, a essa data,
3023 mulheres, das quais
45 por cento eram de tenra idade,
chamando tenra idade
à que vai do berço até à puberdade.
28 por cento das restantes
eram senhoras, daquelas senhoras que só havia dantes.
Umas, viúvas, que nunca mais (oh! nunca mais!) tinham sequer sorrido
desde o dia da morte do extremoso marido;
outras, senhoras casadas, mães de filhos…
(De resto, as senhoras casadas,
pelas suas próprias condições,
não têm que ser consideradas
nestas considerações.)
Das outras, 10 por cento,
eram meninas casadoiras, seriíssimas, discretas,
mas que por temperamento,
ou por outras razões mais ou menos secretas,
não se inclinavam para o casamento.
Além destas meninas
havia, salvo erro, 32,
que à meiga luz das horas vespertinas
se punham a bordar por detrás das cortinas
espreitando, de revés, quem passava nas ruas.
Dessas havia 9 que moravam
em prédios baixos como então havia,
um aqui, outro além, mas que todos ficavam
no troço habitual que o meu pai percorria,
tranquilamente no maior sossego,
às horas em que entrava e saía do emprego.
Dessas 9 excelentes raparigas
uma fugiu com o criado da lavoura;
5 morreram novas, de bexigas;
outra, que veio a ser grande senhora,
teve as suas fraquezas mas casou-se
e foi condessa por real mercê;
outra suicidou-se
não se sabe porquê.
A que sobeja
chama-se Rosinha.
Foi essa que o meu pai levou à igreja.
Foi a minha mãezinha.


António Gedeão

1º Desafio: Seria, o poeta, bom a Matemática?

3 comentários:

Anónimo disse...

Sim, num universo de 3023 mulheres ele caracteriza 83% da população feminina e não caracteriza os restantes 17%. A mãe do poeta pertencia aos 10% da população feminina referente às meninas casadoiras.
Vanda Belém

Anónimo disse...

Cara Anabela

Segundo o próprio poeta António Gedeão, este admira em especial uma pessoa, a sua mãe. A ela deve a sua maneira de ser…



"(…) A minha Mãe tem para mim um significado muito especial, não é por dever, é porque … Há um poema chamado «Mãezinha» em que coloco a situação num plano puramente probabilístico: meu pai pela rua, uma eliminação acidental de pessoas, de acontecimentos, até que restou uma pessoa,a minha Mãe. Até já ouvi recitá-lo com um certo ar de graça. Ora não tem graça de espécie nenhuma: é simplesmente um agradecimento por me ter permitido ser assim como sou."



In Jornal Expresso, 4 de Junho,1994


Falamos então de probabilidades emergentes numa química poética, não? Segundo ele a Matemática passa a ser pura coincidência quando se pretende apenas um "agradecimento".

PAula Brasil

Anónimo disse...

Se é bom a matemática não sei - prefiro a "Pedra Filosofal, mas pela sua profissão (Rómulo de Carvalho - professor de fisíco-quimica) tudo leva a crer que sim. Na escrita ninguém pode contestar o seu brilhantismo.
Luísa Silva